Tarde de tango entre montanhas
Não foi acaso, não acredito nele. Percorria o interior do Estado do Rio de Janeiro, dentro do projeto TIM Grandes Escritores, e estava em Vassouras. Certa tarde quis visitar uma das fazendas tradicionais, símbolos da época do café, o tempo era curto, precisava fazer uma escolha. Olhando uma série de fotos me detive numa: Esta! Sem hesitar apontei para a Fazenda Cachoeira Grande e só depois soube que um pressentimento me levou ao gesto. Ou não? Alguma coisa maior comandou minha indicação? Jamais terei a resposta e nem quero, prefiro acrescentar aos pequenos enigmas que me acompanham e tenho prazer em remoer. Era uma tarde quieta, a garoa (ou seria um chuvisco?) caía leve, o silêncio nos envolvia enquanto o carro saindo do asfalto na direção de Mendes pegou uma estradinha de terra e chegou a um portão de ferro trabalhado. Do lado de lá, gramados, palmeiras, gansos dormitando à beira de um lago, e um acesso pavimentado que nos levou à casa rosa, de fachada interminável.
Um minuto e a dona, Núbia Caffarelli, loira, elegantemente vestida, o riso manso e amplo, abriu a pesada porta e penetramos em um hall que de pequeno nada tinha. Ao lado de Núbia e de sua tia, Magdalena Manso Vieira, iniciamos uma peregrinação por salas e salões de pé-direito altíssimo, soalhos com tábuas largas, enceradas, cobertos por tapetes que absorviam o ruído dos passos. Aqui, um lustre que veio de Viena, ali a cadeira em que dom Pedro II repousava, na próxima sala a mesa em torno da qual se sentam 24 pessoas. Assim caminhamos pela sede da fazenda, célebre pelas 75 janelas. O que leva Núbia a dizer com humor: 'Precisamos de uma tarde inteira para fechá-las.' Ela e o primeiro marido, Francesco, compraram a fazenda nos anos 80, estava quase em ruínas, depois de 20 anos de abandono. Restauraram tijolo a tijolo, vidro a vidro, peça a peça. Viúva, Núbia se casou com Jorge que tem pela casa o mesmo amor, afinal foi um de seus restauradores.
Nessa fazenda, Eufrásia Teixeira Leite, personagem mitológica de Vassouras - e do Brasil -, sobrinha do Barão de Vassouras, herdeira de imensa fortuna (bilionária pelos padrões atuais) deu um jantar à Princesa Isabel e ao Conde D'Eu. Uma noite de sofisticação ímpar, regada a Chateau Margaux e a Chateau Lafitte e com os comensais à mesa por cinco horas. Eufrásia, moderna, avançada para seu tempo, viveu em Paris, foi amante de Joaquim Nabuco, com quem se recusou a casar para manter a própria independência e libertou seus escravos muito antes da abolição. Ao morrer, repartiu seus bens entre empregados, pobres da cidade, doou grandes somas para instituições beneficentes e criou hospitais e asilos. Em Vassouras, procurem a escritora Lielza Lemos Machado, ela tem mil histórias para contar.
Quando entramos na sala de estar, que foi a antiga cozinha da casa, deparamos com a mesa posta, um bule de prata com café da fazenda mesmo, jarras de cristal com suco de maracujá, bolos de passas e de abacaxi, pão de queijo saído do forno. As xícaras não faziam ruído ao serem depositadas sobre os pires, havia finas toalhinhas de renda como anteparo. Costume que vinha da etiqueta, porque se tomava café quando ali eram dados concertos e o silêncio absoluto era de bom tom. 'Concertos?' Então, Núbia virou-se para a tia e pediu: 'Madá! Toque um pouco.' Houve uma breve recusa, gentil, porém Magdalena, magra, elegante, de idade indefinível, caminhou para o piano e por meia hora tocou tangos com agilidade e talento nos remetendo à atmosfera portenha de um Café Tortoni. Fora, a garoa fina encobria as montanhas coroadas por uma neblina azulada; fazia um pouco de frio. Dentro, era o tempo paralisado. Olhei para a lareira e dei com o retrato de uma jovem em um vestido tomara que caia. Olhei a pintura, olhei Magdalena. Ela confirmou. 'Foi pintado por Flexor, que me deu de presente. Ele começou a me retratar, fiz uma sessão, passei um final de semana na piscina do clube Harmonia, em São Paulo, fiquei bronzeada, e quando voltei a posar levei uma reprimenda de Flexor. 'Tenho de refazer seu tom de pele.' E terminou o quadro.'
Magdalena deixou a sala, demorou um pouco e trouxe um álbum organizado pela revista Vogue em 1977. Havia recortes de colunas de Alik Kostakis e de Tavares de Miranda, expoentes da crônica social paulistana na época. Numa das fotos, Magdalena dança com Juscelino Kubitschek. A conversa fluiu e quando Araraquara veio à tona, Magdalena pareceu estremecer. 'Araraquara? Conheceu o Osvaldo de Almeida?' Sim, conheci, era diretor da ferrovia, chefe do meu pai, porém, mais do que isso, pai da Heleninha, uma das sensações do colégio, porque era linda, inteligente, divertida. 'Ah! O Osvaldo! Fui apaixonada pelo irmão dele, o Hélio.' Naquele momento, o tempo abriu uma brecha.
A atmosfera da tarde que caía, a garoa (ou chuvisco), a luz esmaecida da sala, o retrato sobre a lareira, me levaram ao filme Rebeca, Mulher Inesquecível, de Hitchcock. A visita terminou, as imagens daquela tarde me acompanharam, quando voltei a São Paulo liguei para Heleninha, sólida amizade que me resta do tempo de colégio. Contei o episódio, ela ficou arrepiada. 'Encontrou Dalena? Onde está? Que mundo pequeno, que coisa bonita.' Foi a minha vez de espantar. 'Dalena?' E Heleninha: 'Um dia, acompanhei papai e tio Hélio a uma festa e fui apresentada a JK. Conversava com o presidente, quando ele olhou sobre meus ombros, abriu um sorriso, esqueceu tudo, com quem falava, o que dizia, e correu para Magdalena que acabara de entrar: 'Dalena, Dalena!' Assim ouvi, assim ele a tratava. Aquele encontro nunca me saiu da memória. Ela sempre foi mulher deslumbrante.' E continua deslumbrante, disse eu. Dalena, Magdalena, Madá me pareceu feliz, sem idade, embalada por memórias aquecedoras. Vassouras. Eufrásia, Dalena, o retrato sobre a lareira, o cheiro do café coado, do pão de queijo saído do forno, o perfume de Núbia, a garoa umedecendo a atmosfera. Onde estou, em que ano, em que lugar? Os tangos ainda ecoam nas montanhas que foram cobertas por cafeeiros.
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Fonte: O Estado de S.Paulo - Caderno 2-D16, 27/10/2006.